(Per) Curso Repórteres do Presente: Uma imersão na pólis que pulsa diante de nossos olhos
Manhã fria de sábado, Praça Vladimir Herzog, Bela Vista, Centro de São Paulo, primeiro dia do curso "Repórter do Futuro" módulo "Descobrir São Paulo, Descobrir-se Repórter" promovido pela OBORÉ.
Entre máscaras, concreto gelado e o desejo pelo encontro, de fato um reencontro pelo que é mais substancial, estar junto, ser/estar numa metamorfose involuntária, iniciamos nosso trajeto, depois de longos dois anos pandêmicos nossa liberdade floresceu pelos muitos olhares dessa partida, como água que permeia e faz brotar muitas ideias dessas raízes paulistanas.
Numa espécie de deriva poética, tal
qual disserta o filósofo francês Guy Debord, as relações psicogeográficas impuseram sobre nós um lançar-se aos labirintos dessa terra cosmopolita.
Como ponto de partida estão nossas percepções estéticas, diante de uma cultura visual latente, nos muros, nos grafites, nas ruelas, nessa gente, nas grandes avenidas que escondem os riachos da história, estamos por redescobrir a metrópole em sua manjedoura social, um paradoxo em ser o centro financeiro do país, ao mesmo tempo que é lar à céu aberto para tantos outros, terra do sonho e do desalento, terra do ver-se nú, do mesmo modo estamos em súmula, numa autodescoberta sensorial e profissional.
Caminhantes pelas palavras de Marcelo
Rainho, como caixas de pandora no meio do caminho...
A cultura visual nos convida sem
ser cortês e aguça nossas sinapses mais referenciais que fazem de nossas
memórias afetivas, pontes de conexões de um lugar para o outro, na tentativa de
emergir pautas relevantes em meio ao concreto arquitetônico, aos elevados, arranha-céus,
pontes e viadutos, sem deixar de tirar da invisibilidade, garis, pedintes,
gente apressada e o néctar da pauliceia: sua história pujante. Assim a polis
renasce mais próxima de nós, numa escadaria da liberdade, diante de jovens de
olhos atentos, cadernetas em mãos ativas e numa aula na rua, sendo ela a veia
dessa urbanidade toda.
A praça é nossa por direito! A nossa ágora de agora é nosso memorial de protesto pela liberdade, de ontem, do hoje e de outrora. Ideal libertário sempre faz escola.
Eu aluno, aquele que busca a
luz das ideias e ao mesmo tempo leva luz às pautas esquecidas pela grande
mídia, evoco Deus Cronos para compassar esses ajustes instintivos por
justiça social.
No paradoxo da liberdade que oprime e da lei que liberta, me lanço ao rigor do que está escrito para dar um passo adiante onde o foco de luz se concentra no proscênio dessa esperança. O direito à cidade é pauta intermitente da minha redação.
Cada um de nós, partes de um todo curioso, relacional, caminhamos para o alto da colina, de onde nasceu São Paulo, sempre na espreita de um protagonismo que uma cidade como essa sabe muito bem proporcionar a quem não se acanha, a quem se lança diante da multiplicidade de cidades, dentro dela mesma, como nós nos permitimos.
Não obstante daquela deriva evocada
inicialmente, ainda que com a bússola dos mestres que desbravaram essa polis muito antes de nós, estivemos, sobretudo, diante do inesperado, como na porta
de um ateliê expositivo, no coração da cidade, que embora estivesse fechado, seu
artista nos convidou para imergir em seu ambiente/floresta, cheio de ritos e
intimidades, uma pulsação com a cara de São Paulo e suas margens.
“Ser universidade é abrir nossa mente
para o universo”
Disse o jornalista/professor Sergio Gomes, timoneiro
dessa nossa viagem estética/urbana. Já não o mesmo que horas depois nos
oferecia devaneios e reflexões de sua sabedoria, de suas muitas histórias, esse
novo Sérgião, mais próximo, mais íntimo, mais meu professor, nosso referencial
de história diante de sua experiência em longitude e latitude, daqueles mestres
que tem uma visão panóptica do espaço social, de quem temos por dever moral,
humano e acadêmico, absorver e agradecer.
Canetas aceleradas para registrar o
que nossos ouvidos destacavam naquela profusão de sons da cidade que nunca
dorme... Por falar nisso, dialogamos sobre as noites brancas, Sérgio refletiu a Virada Cultural e Karen me sugeriu Dostoiévsky.
Ana nos alimentou com a transversalidade de Walter Benjamim, que permeia nossas relações sociais, ainda que a retórica do filósofo esteja diante da arte; arte que não mais do que reflexo social em criador e criatura, nos acolheu em oxigênio para esse mergulho.
Rainho nos relata que entre 1910 e 1920 São Paulo teve 244 exposições de arte, o que já demonstrava sua vocação artística prestes a parir a Semana de Arte Moderna de 22.
A efervescência daquela época deveria ter podido viajar para o futuro que somos hoje, desse nosso presente, para dimensionar seus frutos. As descobertas do nosso caminhar não pararam e foram catalisadoras dessa nossa aula-passeio.
A São Paulo do início do século XX não tinha espaços expositivos a não ser salões comerciais, como os quais Anita Malfatti, Lasar Segall e tantos outros ocupavam com suas obras.
Eu queria poder responder o artigo “Paranoia
ou Mistificação” escrito por Monteiro Lobato, no jornal “O Estado de São Paulo” em que criticou Anita Malfatti de forma contundente, com eloquência e duas doses de machismo, um nicho imperceptível para a época.
Seguimos... Nossos diálogos aqueciam nossas percepções: Seja me embasbacando com a informação de que onde hoje é a
avenida Nove de Julho, no início do século passado era um riacho com os primeiros quilombos de São Paulo, seja com a constatação de agora em que vemos empresas se apropriarem do espaço público do centro da
cidade para realizar festas privadas. É o pecado capital e suas heresias naturalizadas...
Ouvimos histórias de Oswald e Mário de
Andrade e fez com que compreendêssemos muitas partes de um todo.
Inevitavelmente lembrei de Caetano, de
Criolo ou de tanta música raíz...
Diante de tanto que vi, muito do que
me chamou atenção é o que não pude ver: Uma cidade que não permita a
invisibilidade de quem a construiu; seja do operário nordestino que migrou pra
cá, na década de 70 e ajudou a construir a pujança de São Paulo, seja do preto, do samba, do choro, ou dos garis
que vi pelos caminhos ou os muitos cidadãos em situação de rua desse país terrorista,
que não cuida dos seus filhos e só os percebem quando atrapalham a paisagista.
Cito a canção “A ordem natural das
coisas” do rapper paulistano Emicida, em seu recente álbum “AmarElo” (2019)
para deleite dessa reflexão existencialista, pois eu sou fruto desse lugar, de
uma periferia que geralmente não ecoa no centro, mas é reflexo do que há por
dentro.
A ordem natural das coisas
(Damien Alain Faulconnier e Leandro Roque de Oliveira)
A
merendeira desce, o ônibus sai
Dona Maria já se foi, só depois é que o sol nasce
De madruga que as aranha desce no breu
E amantes ofegantes vão pro mundo de Morfeu
E o sol só vem depois
O sol só vem depois
É o astro rei, ok, mas vem depois
O sol só vem depois
Anunciado no latir dos cães, no cantar dos galos
Na calma das mães, que quer o rebento cem por cento
E diz: "leva o documento, Sam"
Na São Paulo das manhã que tem lá seus Vietnã
Na vela que o vento apaga, afaga quando passa
A brasa dorme fria e só quem dança é a fumaça
Orvalho é o pranto dessa planta no sereno
A lua já tá no Japão, como esse mundo é pequeno
Farelos de um sonho bobinho que a luz contorna
Dar um tapa no quartinho, esse ano sai a reforma
O som das criança indo pra escola convence
O feijão germina no algodão, a vida sempre vence
Nuvens curiosas, como são
Se vestem de cabelo crespo, ancião
Caminham lento, lá pra cima, o firmamento
Pois no fundo ela se finge de neblina
Pra ver o amor dos dois mundos
Nesse nosso capítulo um, dessa imersão jornalística, atravessamos muitas pontes para escrever o que pulsa por cima e por debaixo delas, faça chuva ou faça sol, não nos queixemos da falta de peixe no anzol, mas mergulhemos para compreender essa fuga.
Que a força de nossa ação jornalística seja muito mais forte do que uma garoa paulista.
Tiago Ortaet
23/05/2022
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