Intolerância religiosa cresce nos últimos anos no Brasil
Lideranças políticas, fundamentalistas e extremistas incentivam atitudes de segregação, principalmente contra religiões de matrizes africanas e indígenas.
O último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), em 2010, diagnosticou dados dos hábitos e costumes dos brasileiros e apontou que mais de 86% da população se declara cristã. Desse total, há predominância de católicos, 66% dos brasileiros, seguido pelos evangélicos, que tiveram uma ascensão nas últimas duas décadas, chegando aos 22% da população.
O gráfico com as medições iniciadas há mais de um século mostra que no início da série histórica, em 1872, 100% dos brasileiros se declaravam católicos, o que já é um fato revelador, uma vez que, naquela época, as religiões de matriz africana, indígenas, islâmicas, dentre outras, não tinham espaço para liberdade de credo, nem mesmo para serem mensuradas.
Com a promulgação do decreto 119-A, em 1890, o Brasil se torna um país laico, mas nem sempre o que está escrito é de fato cumprido. Ainda hoje, em pleno século XXI, as casas das leis, em suas diferentes esferas, seja municipal, estadual ou federal, ainda carregam o conceito do cristianismo, tendo em diversos órgãos públicos, país afora, crucifixos afixados nos parlamentos, uma clara afronta à laicidade.
Para a jornalista, mestre e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP e Mãe de Santo, Cláudia Alexandre, o contexto histórico da intolerância religiosa no Brasil advém do pensamento escravocrata que marca a História desde a colonização do país.
“o preconceito, a intolerância e o racismo religiosos são problemas sociais que atestam o quanto o Brasil, mesmo sendo um país laico, ainda não conseguiu superar heranças do sistema escravocrata e colonialista, de um período em que havia a dominação da Igreja Católica, exercendo forte poder sobre o Estado”, destaca Alexandre, que também é autora do livro “Orixás no Terreiro Sagrado do Samba – Exu e Ogum no Candomblé da Vai-Vai” lançado em 2021.
Em Guarulhos, cidade da região metropolitana de São Paulo, que condensa a maior população do estado depois da capital, com aproximadamente 1,4 milhão de habitantes, os desafios das políticas públicas em promover campanhas de conscientização de tolerância e respeito à diversidade religiosa são aumentados, principalmente pela grande circulação de imigrantes que embarcam e desembarcam no maior aeroporto internacional da América do Sul, inaugurado na cidade há quase quatro décadas.
Tanto em sua fundação, quanto em seu nome, a cultura dos povos indígenas ao longo da história guarulhense sempre esteve presente, bem como uma grande migração de cidadãos de várias partes do mundo, o que amplia a importância de um trabalho coletivo, unindo esforços da sociedade civil organizada e poder público com relação à diversidade religiosa.
Cristiane Bueno Terra, 38 anos, moradora do bairro Cocaia, periferia de Guarulhos, conta que sofreu preconceito explícito por parte de seus vizinhos. “Fui ofendida aos berros: ‘Deus irá derrubar esse chão do diabo, tudo irá cair por terra’ dizia minha vizinha”, revela Cristiane, Mãe de Santo do Terreiro Templo de Umbanda Cigana Madalena e Pai Ogum.
Anderson Guimarães, Subsecretário de Igualdade Racial da Secretaria de Direitos Humanos de Guarulhos, aborda o permanente combate à intolerância religiosa e ressalta, dente outras ações, a inserção da governança municipal no programa MigraCidades , selo que premia cidades que têm uma atenção especial no acolhimento aos migrantes internacionais, em todas as suas dimensões, inclusive nas manifestações de credo.
“O poder público é responsável em intervir sempre que as ameaças aos direitos fundamentais se manifestam, também analisar os indicadores de violência contra o livre credo dos cidadãos, bem como pensar dispositivos punitivos contra os que afrontem a liberdade religiosa. A intolerância religiosa se tornou uma das principais causas de perseguições às minorias no mundo e com frequência essas atitudes caminham paralelamente com xenofobia, etnocentrismo, racismo, questões econômicas e de manutenção de poder das religiões dominantes. Estar atento às interferências culturais que desenham o curso das relações sociais é o grande desafio do estado laico, afinal como disse Thomas Jefferson, o preço da liberdade é a eterna vigilância.”
Cidade limítrofe da capital, Guarulhos inaugurou em 2018, o SOS-Racismo, serviço público de denúncias de racismo.
Para José Marcos Ribeiro, 62 anos, morador de Mogi das Cruzes, advogado aposentado e facilitador de cultos e ritos xamânicos, desde o momento em que passou a consagrar as medicinas da floresta, dentre elas, o uso da Ayahuasca, sua vida tomou um novo rumo. “Inicialmente procurei a Ayahuasca para tentar fazer desdobramento astral (experiência religiosa), mas percebi de imediato que se tratava de uma grande ferramenta de autoconhecimento e transformação.”
A Ayahuasca é popularmente conhecida como um chá alucinógeno, feito a partir de cipó com a mistura de uma planta nativo-amazônica. Para os adeptos das religiões que fazem uso da Ayahuasca, o chá é considerado enteógeno (plantas capazes de alterar a consciência e induzir ao estado xamânico ou de êxtase), termo utilizado entre os frequentadores.
A Secretaria de Justiça e Cidadania de São Paulo registrou um aumento de 1.135% de denúncias sobre intolerância religiosa em comparação entre 2019 e 2021 contra religiões de matriz africana.
A pesquisadora Claudia Alexandre avalia a influência do atual cenário político brasileiro no aumento de casos de intolerância religiosa e vê com preocupação atitudes de autoridades que disseminam discursos de ódio, contrários às pautas de diversidade. “Ódio é o elemento impulsionador da intolerância”, enfatiza.
“Acredito que desde 2018 passamos a conviver com um importante retrocesso em conquistas da sociedade civil organizada e a imposição de um pensamento neoliberal que impactou as relações humanas, que foram desde exaltação à ditadura, flexibilização da posse de armas, ataques à democracia até afirmar que para o Supremo Tribunal Federal (STF) era preciso alçar, ao posto da corrente, juízes terrivelmente evangélicos.”
Intolerância nas redes
O mundo virtual amplifica e dá voz aos grupos neofacistas, que apostam no anonimato das redes sociais, geralmente em perfis falsos e que têm se identificado com falas de autoridades públicas demonizando religiões de matrizes africanas. Nossa reportagem identificou postagens em redes sociais com cunho preconceituoso e discriminatório.
Claudia Alexandre, reflete ainda, que em 2021 o país registrou um aumento de 141% de denúncias de intolerância religiosa e que a maioria dos casos estão ligados a ataques aos seguidores, patrimônios das religiões de matrizes africanas e povos de terreiro. “Isto é o que chamamos de racismo religioso, porque é um tipo de violência que está ligada a um grupo específico, estruturalmente relacionado às opressões de raça e cor da pele”, completa.
EDUCAÇÃO INCLUSIVA
É consenso entre pesquisadores e intelectuais a urgente necessidade de implantação de programas e projetos permanentes em educação que fomentem a cultura africana, grupos étnicos e povos originários, como prevê a lei federal 10.639/2003, legislação que, se cumprida, contribuiria para a conscientização da tolerância e respeito religiosos diante da cultura de outros povos que formam a identidade brasileira.
“O Brasil é um país com uma grande dívida histórica com os povos africanos e seus descendentes. A lei 10.639 tem por objetivo a reparação histórica, a partir da valorização das diversas culturas e suas origens, apagadas e/ou rompidas com o processo da escravidão. Porém, após 19 anos, o que se sabe é que a lei não é cumprida em boa parte do território nacional. Nota-se que em muitas escolas a rejeição aos conteúdos sobre a cultura afro-brasileira e africana está ligada à incompreensão, inferiorização e demonização desta cultura”, finaliza.
Em Guarulhos, o canal de denúncias do S.O.S Racismo é através do telefone 11 2402-1000 ou por e-mail sosracismo@guarulhos.sp.gov.br
Em todo o Brasil, as denúncias podem ser feitas através do DISQUE 100
Créditos:
Pauteiro: Liuken Raynan
Editor: Tiago Ortaet
Planejamento e Multimídia: Gustavo Uchôa de Lima
Revisor: Redação
Repórter: Tiago Ortaet, Vinícius Cruz e Gustavo Pereira
*Foto de capa em destaque – Fotógrafo João Bidu – Portal Terra
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