2019 reticências BY Tiago Ortaet


2019 reticências

Os primeiros segundos de 2019 foram segurando as mãos de minha mãe, num leito de hospital, adaptado em plena sala da casa onde cresci, eu não sabia que seria o último réveillon nosso, juntos; mas a vida é mesmo cheia de viradas.

Fui passageiro na velocidade de uma ambulância, apoiei literatura da comunidade em sinal de esperança, governei em última instância pra fazer valer minha crença, preservar meus valores e fazer a diferença.

Driblei doença, dirigi sem rumo pra ver a paisagem, fiz protesto sem pedir licença, brinquei com os filhos num presente sem embalagem, recusei sentença, escrevi um livro, plantei novas amizades, fiz da ação social minha identidade, me desorganizei pra ser feliz, planejei e não cumpri, da corrida só fui até ali. Parei, mas não desisti, peguei impulso pra voltar a sorrir... 

Foram dias de luto enquanto substantivo e dias de verbo, vesti minha arte, cheguei tarde, levantei cedo e sem medo mergulhei de novo. Fundei casa de cultura, levei afeto onde havia amargura e na minha caminhada ninguém me segura.

Saí correndo pro hospital, fiquei preocupado; emocionei, chorei diante do corpo velado, orei, me senti apagado, desabei e me senti incompleto, destroçado... Vi os olhos da mamãe perderem o brilho, sua mão deixou a minha, no meu chão se abriu um buraco e vi naquele ato todo amor que eu tinha, mas ao sabor amargo do dia, descobri que ainda tenho, que o amor não se mede pelo tamanho do engenho; que esse amor é a asa do meu vôo e o lápis do meu desenho. Acendi uma vela pra pintar a tela que prova as letras de tudo que desempenho.

Me indignei, indaguei a sociedade, provoquei verdade em ato cultural, publiquei artigo toda semana com uma acidez que emana de minha luta social, fui matéria de jornal, combati o mau com o bem e a intolerância não teve meu “amém”.

Brindei amores, bebi cerveja, visitei Veneza e outras tantas cidades culturais, viajei com a família, me fantasiei pra celebrar a infância, encarei matilha e ajustei a importância.

Desbanquei rumores, provei dissabores e vigiei minha conduta mais do que a puta da esquina, corri pelo certo, fui copo d`água no deserto, fiz lição de casa com o livro aberto e comi mingau de milharina.

Olhei bem nos olhos de pessoas que nunca mais verei, da escala de desconfiar do ser humano, zerei... Não surfei na onda do ódio, não comemoro só o que fiz, mas também o que eu recusei...  Fui conselheiro e aconselhado, caí de pé, tomei remédio controlado, recusei café, tomei chuva e dois goles de juízo num amigo consolado.

Me entristeci assistindo uma humanidade que não reconheço; um cristianismo que não tem valores, só preço; me envergonhei com uma versão de meu país que não tem meu apreço e um fim do poço, que mostra todos os dias, que é só o começo... Mas eu renasço insistentemente quando anoiteço. É na noite que minha alma emerge tudo isso.

Ano alma-nascente de rio salgado, dor que nem morfina cura, suor sagrado, fui premiado, professor reconhecido e o maior troféu foi ser abraçado.              

Artista, menino que também se deprime, doravante otimista, alma que não se define, jovem ativista, jogador que sabe ser time, gestor equilibrista, corpo exausto e precisando de regime, ele devora a vida sem dieta, mente construtivista, poeta e vitrine desse emaranhado de fios coloridos, banhado por rios de cantos proferidos, cada qual com sua maneira de chegar às margens e fazer valer essas sinapses todas...

O ano nem acabou e já estou pensando no seguinte, esfarelado, esperançoso, atarefado, manhoso ou pré-destinado, com desafios ou requinte, venha do jeito que for pra ser ouvido e ouvinte, pode vir 2020.

Tiago Ortaet
Dezembro 2019.

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