CASA ORTAÉTICA DE HUMANIDADES LANÇA MANIFESTO CONTRA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM SUA INAUGURAÇÃO
Não tem como falar sobre emponderamento feminino, violência contra
mulher, feminicídio, e similares, sem falarmos de história. Não é de hoje que
mulheres sofrem.... por serem mulheres! Isso porque desde que se tem os
primeiros registros históricos, vivemos em uma sociedade patriarcal, ou seja, uma
sociedade onde o poder é exercido por homens. E se olharmos sem muita atenção,
podemos dizer que muita coisa mudou, que hoje mulheres podem trabalhar, atuar
na política, ocupar cargos de liderança. Mas será que mudou tanto assim?
O machismo estrutural dá as caras ainda na
infância, assim, escancarado como no caso dos brinquedos, mas também
disfarçado, quando desde pequenos meninas ouvem pra sentar direito, se
comportar igual “mocinha”... ou quando meninos ouvem que homem não chora,
quando são ensinados a resolver questões com força física, e crescem achando
que sensibilidade é sinônimo de fraqueza, e motivo de vergonha. Saindo da
infância e passando pra adolescência, quem nunca ouviu a frase “Menina
amadurece antes que menino, homem é mais infantil mesmo”. Homem é mais infantil
ou a sociedade permite que ele se abstenha das obrigações e responsabilidades
com menos cobrança? Mãe solteira que rala em 2, 3 empregos pra sustentar o
filho, se vira entre os trabalhos e os cuidados de casa, quando deixa o filho
com a vó pra sair pra passear e se divertir um pouco, é taxada do que? De
vagabunda, claro. Negligente. Péssima mãe. Onde já se viu, se ausentar do seu
posto de mãe para se divertir, que absurdo. Pai ausente, paga pensão porque é
obrigado, um valor ridículo, que não cobre nem um terço das despesas, não dá um
centavo a mais, pega a criança a cada 15 dias pra passar um final de semana.
Leva no futebol, no churrasco com os amigos, tira foto, posta nas redes
sociais, e é o que? Pai do ano, claro. Pelo menos tá pagando a pensão de fome,
né? E aí a gente pode fazer uma lista grande de situações cotidianas, né? É a
ofensa disfarçada de cantada, é a postura invasiva em uma abordagem de paquera,
são os julgamentos pelo tamanho da roupa, é a pressão pela maternidade... Faz menos de cem anos que mulheres conquistaram o direito ao
voto no Brasil. Faz pouco mais de 50 anos as conquistas por liberdades civis e
direito ao controle de natalidade. E a verdade é que todas as conquistas
importantes, que vieram a custas de tanta luta e sofrimento de centenas de
mulheres, são sempre questionáveis. Conquistamos o direito de trabalhar fora,
mas ainda ganhamos menos para exercer mesma função – ressaltando que essa
diferença é mais presente em cargos mais altos – como os de gerência e
diretoria. Podemos trabalhar fora, mas nas entrevistas de emprego nos perguntam
se temos filho pequenos, se temos pretensão de engravidar recentemente, e
constantemente perdemos oportunidades de trabalho porque a criação dos filhos
ainda é vista como uma obrigatoriedade feminina, o que consequentemente,
prejudicaria o desempenho profissional. Podemos trabalhar fora mas temos que
lidar com mansplaining, e manterrupting, por exemplo.
Manterrupting
acontece quando um homem interrompe constantemente uma mulher, de maneira
desnecessária, não permitindo que ela consiga concluir sua frase. Esse
comportamento é muito comum em reuniões e palestras mistas, quando uma mulher
não consegue concluir sua frase por ser constantemente interrompida pelos
homens ao redor.
Mansplaining ocorre quando um homem dedica seu tempo
para explicar algo óbvio a uma mulher, de forma didática, como se ela não fosse
capaz de entender. O termo é uma junção de “man” (homem) e “explaining”
(explicar). Em atos de mansplaining, um homem acha que sabe mais sobre um
tópico do que uma mulher. Muitas vezes, essa expressão está ligada ao
manterrupting – nesses casos, o homem interrompe a mulher para mostrar que sabe
mais do que ela. Podemos trabalhar, mas ainda sofremos assédio sexual e moral.
Podemos trabalhar, mas continuamos acumulando jornadas duplas, porque pouco
mudou sobre a divisão de tarefas do lar. Podemos votar, mas seguimos sendo
minorias nos cargos públicos – a ponto de ter que ser estabelecida uma cota
mínima que os partidos devem cumprir. Podemos votar, mas vemos adesivos
ridicularizando a ex-presidente, com as pernas abertas, colados nos carros como
forma de protesto. Podemos votar, mas não temos uma participação ativa. Podemos
votar, mas ainda são os homens que votam temas como projetos de lei de proteção
à vítimas, descriminalização do aborto, suporte à vítimas de violência
doméstica e sexual. Podemos votar e escolher representantes políticos, mas
ainda não conseguimos nos estabelecer como esses representantes. Podemos votar,
mas ainda são homens que decidem temas cruciais da vida das mulheres.
Conquistamos liberdade
econômica, atuamos ativamente na economia, mas ouvimos discursos como o do
PRESIDENTE MICHEL TEMER, em evento em comemoração ao Dia Internacional da
Mulher, em março de 2017: “Tenho absoluta convicção, até por formação
familiar e por estar ao lado da Marcela, do quanto a mulher faz pela casa, pelo
lar. Do que faz pelos filhos. E, se a sociedade de alguma maneira vai bem e os
filhos crescem, é porque tiveram uma adequada formação em suas casas e,
seguramente, isso quem faz não é o homem, é a mulher […] ela é capaz de indicar
os desajustes de preços em supermercados e identificar flutuações econômicas no
orçamento doméstico”. Ou seja, ainda ouvimos que nosso papel imprescindível é o
de controle e orçamento do lar....
Conquistamos o direito de
jogar futebol (o que era proibido HÁ APENAS 40 ANOS ATRÁS), mas não
conquistamos o incentivo financeiro de patrocinadores. Conquistamos o direito
de praticar esporte, mas ouvimos que mulher não nasceu pra isso, que esporte
masculino é muito mais legal e por isso recebe mais dinheiro. Conquistamos o
direito de frequentar Universidades, mas temos que ouvir que mulher se
interessa menos por ciência.... Conquistamos o direito ao controle
contraceptivo, mas não escapamos do julgamento que pune a mulher pelo prazer
sexual. Mulher não nasceu pra ter prazer, mulher não pode querer e gostar de
sexo, tá doido? Não, isso não é coisa de mulher direita, que se dá ao respeito.
Isso é coisa de vagabunda, piranha. Mulher pode fazer sexo sim, mas só se for
pra satisfazer um corpo masculino, para o seu próprio prazer aí, não, aí não
está certo. Aí a sociedade vai julgar, vai condenar, e vai rotular. Porque a
mulher não tem autonomia nem sobre seu próprio corpo. E é por isso que tantos
homens se sentem no direito de agredir, violentar e até matar. A mulher, como
um ser inferior, não tem vontade própria, e nem é digna de respeito. É apenas
um objeto a serviço da sociedade patriarcal. Quantas vezes tivemos e temos que
lidar com olhares desagradáveis, comentários invasivos disfarçados de elogios?
Quantas vezes as roupas, o trajeto escolhido, ou qualquer outra variante
insignificante foi usada pra culpabilizar a vítima pela violência sexual
sofrida? Quantos julgamentos passa uma mulher que sofre violência doméstica,
seja física e/ou psicológica, e não tem coragem de denunciar? “Ah, gosta de
apanhar. Mulher de malandro. Falta de vergonha na cara”, e por aí vai.
A verdade é que ser mulher é já nascer presa. Presa numa sociedade que
vai te julgar e te culpar, não importa qual seja a situação. Você vai ser
julgada por ter deixado de seprocupar com sua aparência física, vai ser culpada
pela escolha da sua roupa, por ter andado por um caminho pouco iluminado. Vai
ser julgada por não ter sido boa esposa, por não ter tido a paciência necessária,
e por não ter cuidado do marido como deveria. Você vai ser culpada por ter
aguentado calada tanta violência física e psicológica, vai ser responsabilizada
por não ter pedido ajuda. Muitas vezes, quando juntar todas as forças para
gritar por socorro, vai ter que lidar com desconfiança e questionamentos. Ser
mulher é ter que lutar diariamente para existir com dignidade, é ter que pensar
10x mais sobre nossa segurança e integridade física.
O Brasil é o 5º país em taxa de feminicídio, e para quem tem dúvida
sobre o termo, caracteriza feminicídio o crime que é cometido pelo motivo da
morte ser o fato da vítima ser mulher. Ou seja, quando homens não aceitam
atitudes da mulher, sempre com motivação de posse, ou seja, por ciúmes, por não
aceitar a separação, e assim, se vê no direito de tirar a vida. Algo como “Não
é você que decide o que você faz da sua vida, sou eu quem decido, e se você não
fizer o que eu quiser, você não vai viver”. Mulheres que sofrem esse tipo de
crime não são vistas como seres humanos, são vistas como objetos de posse.
Dados do Fórum de Segurança Pública de SP apontam que em 2018, 536
mulheres foram agredidas POR HORA. O número de
notificações de violência física contra mulheres causadas por seus cônjuges ou
namorados, segundo o Ministério da Saúde, quase quadruplicou de 2009 a 2016 em
todo o país. Uma das grandes barreiras ao combate é a tolerância social a esse
tipo de violência.
De acordo
com uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
em 2014, embora 91% dos brasileiros afirmem que “homem que bate na esposa tem
de ir para a cadeia”, 63% concordam que “casos de violência dentro de casa
devem ser discutidos somente entre os membros da família”. Além disso, 89% dos
entrevistados pensam que “a roupa suja deve ser lavada em casa” e 82% que “em
briga de marido e mulher não se mete a colher”. O número de notificações de
estupros por cônjuges ou namorados das vítimas cresceu quase sete vezes desde
2009. Foi exatamente nesse ano que a Lei 10.015 reconheceu o estupro marital —
o crime também está previsto na Lei Maria da Penha e foi reconhecido como uma
violação dos direitos humanos pela ONU em 1993. Até 2005, enquanto esteve em
vigor o Código Penal de 1940, havia uma previsão que extinguia a punibilidade do
crime de estupro “pelo casamento do agente com a vítima”. Na prática, existia a
possibilidade de que um estuprador não fosse punido caso fosse casado com a
vítima. O estupro, à época, era considerado um crime contra a honra (do homem,
da família), e não uma violação do corpo feminino.
As
notificações de violência por arma de fogo contra a mulher quase quadruplicaram
desde 2009. O medo de especialistas é que, com a mudança nas regras para posse
de arma, o número aumente. De acordo com o “Mapa da Violência 2015: homicídio
de mulheres no Brasil”, embora homens sejam mais frequentemente vítimas de
armas de fogo do que mulheres, esse tipo de arma foi o meio mais usado nos
4.762 homicídios de brasileiras registrados em 2013. Foram 2.323 casos, o
equivalente a 48,8%, seguido por objeto cortante/penetrante (25,3%), objeto
contundente (8%), estrangulamento/sufocação (6,1%) e outros (11%).
E todos
esses dados, apesar de alarmantes, e de serem importantíssimos, porque mostra
que pouco a pouco cada vez mais mulheres consegue procurar ajuda e denunciar,
ainda não são reais. Estima-se que o número verdadeiro seja ainda maior, porque
uma parcela da população feminina não consegue denunciar – seja pela
dificuldade em identificar um relacionamento abusivo, seja por dependência
financeira do marido, ou medo.
Mas olhando
para todo esse cenário, não adianta nos lamentarmos, temos que fazer o que
fazemos desde sempre – lutar. E aqui acredito que a luta tenha que ser dividida
a curto e a longo prazo. Temos que escolher representantes que vão defender
nossos interesses, que vão lutar pela tão sonhada igualdade de gênero.
Representantes que vão trabalhar por um sistema de proteção e acolhimento cada
vez mais eficiente, que realmente ampare e proteja as vítimas.
Mas também não
devemos nos calar cada vez que virmos um comentário machista, seja ele de qual
natureza for. Seja dito por um homem ou por uma mulher. Ninguém nasce machista,
nem homem, nem mulher, a sociedade o faz assim, e da mesma forma, também pode
ensinar o contrário. Não nos calemos, falemos para amigos, parentes, seja quem
for. Como diz uma famosa frase na internet “A humanidade sempre teve medo de
mulheres que voam. Sejam elas bruxas, sejam elas livres”.
Desde que o mundo é
mundo somos vistas como seres inferiores, incapazes de pensar, agir, ou decidir
por conta própria. Desde sempre a luta feminista é ridicularizada, deturpada e
diminuída. Mas nós não calamos e não nos calaremos, não abaixaremos a cabeça.
Apesar de ainda termos um longo caminho pela frente, é inegável o quanto
conseguimos evoluir. Que sigamos firmes e fortes, cientes de que nenhuma
conquista é 100% segura, sempre haverá questionamento, sempre haverá
dificuldades.
A maior parte das nossas mães não foram criadas ouvindo sobre
empoderamento feminino, machismo estrutural, sociedade patriarcal... Mas nós
podemos discutir isso hoje, e mais ainda, podemos curar o mal pela raiz.
Podemos ensinar nossos meninos e meninas sobre quais são os papeis de cada um
na sociedade. Podemos ensinar sobre respeito, empatia e igualdade. Podemos
quebrar tabus, desmistificar ideias retrógradas, desmontar preconceitos. O
emponderamento feminino contra a violência doméstica não se limita a lutar
apenas contra um agressor. Ainda que essa seja imediatamente de importância
máxima. É necessário ter força e coragem para identificar e conseguir sair de
situações de violência física, abuso psicológico, e tantas situações às quais
somos expostas. Precisamos acompanhar grupos que lutam pelos direitos das
mulheres, nos informar, participar ativamente – que seja numa comunidade, numa
Igreja, em uma rua. Ajudar, da maneira que estiver ao nosso alcance. Devemos
olhar, nos atentar, nos ajudar. E o que talvez seja o mais difícil, devemos
lutar para que futuras gerações não vivam mais esses números. A violência
contra mulher é só o último estágio de uma série de violência que sofremos
durante toda a vida. É o último nível de repressão ao qual estamos expostas. É
a consequência final de toda uma cultura que é perpetuada geração a geração,
que sempre nos coloca como seres inferiores.
A nossa
luta deve ser pelo direito à dignidade. Só estaremos seguras quando formos
respeitadas como seres individuais e livres, dignas de respeito e do direito à
vida, seja ela como for. Um dia vi uma frase em um muro que dizia o seguinte:
“O feminismo é a ideia radical de que mulher é gente”. E é isso, o
emponderamento feminino é a luta para sermos vistas e tratadas como gente.
Quanto mais perto estivermos dessa visão, mais seguras estaremos. Que não
tenhamos vergonha de corrigir, de ensinar e de lutar. Que tenhamos coragem de
desafiar e de nos expor. A luta é longa, mas a vitória há de ser compensadora.
Façamos valer as lutas passadas e não nos intimidemos. Hoje nós ainda vivemos
com medo, mas assim como hoje jogamos futebol, há de chegar o tempo em que mulheres
não sentirão medo de ser mulheres.
Thatyana
Oliveira
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