Em minha coluna semanal no Jornal Guarulhos-Hoje abordei a dor da tragédia na E.E.Raul Brasil


Estado Líquido

Tanto a pureza da criança quanto sua inquietude se evidenciam diante do próprio reflexo como quem faz da poça d`´agua seu universo de muitas possibilidades; criança é assim, sonha, voa e se projeta. Quando essa aura vira alvo de um projétil, os projetos de vida são afogados na maré de insanidade desses tempos... 

A perplexidade banha todo um conceito de mundo; cada tiro é um estampido que ressoa no país inteiro como pedra lançada no lago, que se propaga, reverbera diante do caos, da violência incubada do dia a dia, na mira da estupidez, diante da artilharia do ódio; todas as nascentes que desaguariam rio abaixo secam e os caminhos lacrimais de todo um país, inevitavelmente, permeia um tsunami doloroso de consternação. 

Pisaram na poça dágua das crianças com botas sujas de sangue; delas mesmas. 

A infância se perde e vira refém desse aguaceiro com cheiro de esgoto. A maldade fede em todos os seus níveis, inclusive nos hierárquicos. 

Muitos meninos e meninas no interim da infância com a primavera do adolescer, no pátio da escola, só queriam viver... Todo pai e toda mãe desses estudantes só queriam recebe-los vivos; com aquele abraço que alaga de amor...

Que contraste ver uma escola banhada pelo sangue... Com o regar metafórico de flores da juventude, com a irreverência e efervescência desse mar que vibra vida; de uma fase que não evapora nunca; ela fica. É triste ter que conjugar o verbo assim, mas ficava. Evaporou... Oremos! 

Para essas vidas interrompidas o ódio transformou o caldo quente de suas rotinas, dos futuros médicos, administradores, professores, políticos, futuros pais, mães; que foram exterminados, transformados em geleiras, em estado sólido, petrificados pela barbárie, sem cor de pele, sem sentido algum. Que mundo é esse?

Se a liquidez da infância tem a capacidade de irrigar nossa alma; golpes de machado abrem rios quentes de cor magenta, que cortam o chão frio da escola, que matam um pouco cada um de nós e cantam numa cantiga fúnebre que “as flores já não crescem mais, até o ribeirão secou” diante de tantos inglórios do cotidiano, de tanta perpetuação da maldade no berço da civilidade, de tantos golpes de insensatez em nossas humanidades mais requintadas; nossas lágrimas são capazes de regar as sementes, hoje não, por pura incapacidade emocional; mas já amanhã, quem sabe, voltarmos a verdes campos, a sorrisos largos cicatrizados, com águas cristalinas nas margens, como quem pede para ser feliz de novo; fazendo jus ao que é próprio de todo conceito de educação: TRANSFORMAR. 

Sentimentos diluídos na figura paterna que transborda em mim, sofrimento inundando o que sou e o que serei, lamentando profundamente que o ódio tenha triunfado sob esses meninos e meninas; não cabe em mim saber que o ódio, tão feito grife nos dias atuais, tenha impedido que a garoa que essas crianças eram tenham tido o direito de chover de muitos amores, afetos, sonhos, construções, profissões e tudo mais que eles teriam vivido se não tivessem sido enxugados pela maldade.

Atônito, no carro, ouvindo a notícia que pulsava feito mar revolto em meus sentidos da forma mais visceral que uma notícia pode pulsar, no compasso de um coração acelerado, moído pela dor do próximo, dor que é de todos nós e deixa enlutados; eu em pele arrepiada pela vulnerabilidade do sentimento de educador que me ensina como ser humano; eu mergulhei em mim mesmo... 

Foi assim que acolhi a tristeza contagiosa da barbárie numa escola pública estadual da cidade de Suzano; foi com o peito apertado, quase à deriva, com olhos lacrimejantes que vi nas minhas crianças a dor dilacerante de um pai. 

Em meu conta-gotas de realidade há uma inscrição que diz o seguinte “Arma só tem uma função: Matar! Mais armas, mais mortes”

Tiago Ortaet

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