ANÁLISE CRÍTICA DO LIVRO "QUARTO DE DESPEJO" DE CAROLINA MARIA DE JESUS - 1960 - POR TIAGO ORTAET

 O banquete de Brasil servido frio

Cozinhou no quarto, comeu sonhos vencidos… Ousou sonhar, a despejada!

Vida lida, olhares estarrecidos… Caminhou despedaçada!

O fétido da falta de saneamento básico, no barro podre que exalava o aroma da desigualdade chegava mais forte no faro que denunciava a vida sub-humana na primeira grande favela de São Paulo, no bairro do Canindé. Era década de 1.950 na pauliceia suburbana, diante da alcateia que presenciava fome, violência e lama.

A inércia dos poderes fede mais do que esgoto a céu aberto.

A injustiça social se materializava na pele preta de Carolina e naqueles pivetes, lá da esquina. Assim seguiam os dias da escritora Carolina Maria de Jesus na guerra invisível, travada contra a fome, que de tão abstrata, só doía na barriga de quem sentia. Era preciso expressar em palavras, para a posteridade, tamanho sacrilégio, como quem documenta a própria morte em vida, diante de políticos e politicagens.

"O Brasil precisa ser governado por alguém que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças" registrou a autora numa noite esfomeada de 1.957.

Alguns poucos jornalistas da imprensa paulistana foram responsáveis por darem visibilidade aos escritos da autora, que sempre viveu à margem da sociedade. Se não fossem pelas matérias realizadas no Jornal Folha da Noite em 1958 e na Revista O Cruzeiro – edição de 20 de junho de 1959, bem como pela revisão e organização do jornalista Audálio Dantas que compilou aqueles mais de vinte diários no livro publicado em 1960, o grande público talvez nunca tivesse conhecimento daquele retrato fiel de um Brasil excludente que teima em persistir até os dias atuais.

A leitura amarga mas de um jornalismo apetitoso, oferecida por Carolina, trás empatia refogada, consciência à milanesa, diversidade como salada e um suco de respeito espremido sobre a mesa. Cardápio repleto de sabores e saberes de um país desnudo e sem os protocolos dos palácios. Recomendo a leitura somente para quem pôde saciar-se no almoço.

Carolina, mulher despejada de direitos, varrida de uma vida digna com seus filhos, mastigava letras azedas, salivava a amargura de pratos vazios, mas teve poesia farta, olhares insaciáveis por dias melhores. A delicadeza de seu olhar era o contraponto da dureza de sua rotina. "O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica, gostaria de recortar um pedaço do céu pra fazer um vestido." E assim teceu, página por página, uma toalha, para um dia, quem sabe, todo ser humano possa ter sob a mesa, pratos repletos de dignidade.

Vítima do racismo, herdeira da escravidão, tirou forças da desnutrição, da dor e das mazelas mais enraizadas para denunciar os crimes que sofrera. Minuciosa, retinta, faminta e eloquente; Carolina, presente!


Tiago Ortaet

30 de outubro de 2023

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