MAIS UM TEXTO QUE INDICO!!! IMPORTANTE PARA TODAS AS ÁREAS DO CONHECIMENTO, PARA ALUNOS, PROFESSORES, ENFIM, TODOS!!!
O
que é cultura? Por Augusto Boal
Palavras são meios de transporte, como o
trem, a bicicleta e o avião; a palavra Cultura é um enorme caminhão que suporta
qualquer carga. É necessário defini-la, para que saibamos do que estamos
falando, quando dela queremos falar.
Cultura é o que estamos fazemos aqui,
agora, neste instante, discutindo o que é a Cultura. Cultura é este microfone,
esta mesa, esta sala. Nada disto existia – é fruto da mão humana, executora de
nossos pensamentos e desejos.
Este encontro não é apenas “um” exemplo
do que seja a Cultura: é o máximo exemplo, pois Cultura é a reflexão do ser
humano sobre si mesmo e sobre o mundo, e sobre o que faz neste mundo. É o feito
e o fazer, é o como fazer o que se faz. É a criação de uma realidade não
prevista nos desígnios da Natureza. Um Real objetivo, como a construção de
casas e pontes, feitas de pedra; e um Real subjetivo, como a Moral, feita de
valores.
A
Cultura possibilita e engendra a Arte, que é o seu estado supremo e soberano.
Uma lenda antiga e distante – e tudo que é
distante e antigo nos dá a impressão de verdadeiro – diz que a Arte tornou-se
necessária para completar a incoerente e desorganizada criação divina.
Deus, segundo a lenda, por mais perfeito,
veloz e talentoso que tenha sido, tinha também seus limites, e não foi capaz de
completar a Obra que havia planejado, no tempo que havia calculado. Calculou
mal: seis dias mostrou-se curto prazo, mesmo para o Todo Poderoso, pois que o
Poder, ao existir, fixa seus limites; se não os tivesse, seria também meu,
nosso e vosso, seríamos todos divinos: o poder seria substância universal e não
predicado do poderoso. Até o Poder tem fronteiras.
Deus, cansado – toda força, na exaustão,
encontra seus limites – desconsolado e triste, buscou merecido descanso no
domingo, mas não sem antes apelar para os Artistas que logo vieram em seu
socorro para reorganizar o mundo que ele mal havia – e havia mal - criado.
Os sons divinos andavam por aí, espalhados,
notas, claves e bemóis – sonoridades ao vento, enlouquecidas na imensidão
vazia… Vieram compositores para lhes dar estrutura e razão: eis a sonata, o
samba e a canção. A matéria prima era divina; mas a forma tinha os contornos de
Villa-Lobos, Cartola, Dolores Durán e Nelson Cavaquinho, para não citar nenhum
presente.
As cores, espalhadas e sem rumo, andavam às
turras com o traço, buscando perspectivas na vida e no espaço – vieram os
artistas plásticos e pintaram quadros, esculpiram estátuas, grafitaram paredes,
e nos fizeram entender o que Deus quis fazer, mas não teve tempo; quis dizer,
mas não disse.
As palavras, esses seres estranhos que
não existem – são riscos na areia que as ondas do mar apagam; sons, que a leve
brisa dissolve com suas carícias -, as palavras eram vazias e tortas,
desengonçadas – até que chegaram os poetas para domesticá-las, dando-lhes
sentido e destino.
Só os seres humanos são capazes de criar Arte
e Cultura -que é a coerência com a qual
o Artista vê o mundo, corrige e completa a obra de Deus que, assim, se revela e
resplandece. Vivam os artistas! Mas coerência nem sempre é virtude, como nem
sempre a Moral é Ética.
A
Cultura, que faz existir o imaginado, que é invenção do novo, do necessário e
útil – e do belo, tão útil como necessário -, pode-se extasiar diante de si
mesma e mergulhar nas águas de Narciso. O Artista, inebriado, pode pensar-se
Deus e parir a arte pela arte. Pode, ao contrário, congelar seus caminhos, e se
estiolar na repetição.
A
Cultura, no fio da navalha, cria, destrói e recria. Quando, querendo instaurar o novo, fixamos nossos
caminhos, a cultura se cristaliza na Técnica, que nos permite inventar e
apressa o invento, mas que pode nos obrigar a segui-la, e servi-la – ajuda ou
atrapalha. Quando fixamos nosso comportamento na sociedade, a Cultura se
cristaliza na Moral, tão necessária, mas que pode ser odiosa. Tudo, neste mundo
em trânsito, transita.
Cultura, traduzida em Arte, deve ser criação
permanente, revolucionária, conquista do novo, nunca estratificação do
conquistado. Pode-se transformar em Indústria, pode-se inserir na Economia,
sim, mas desde que o criador seja o Artista, sempre o Artista, e não o
produtor, que deve trabalhar com aquilo que foi criado, e não criar limites à
criação. O artista cria o que não existia; o produtor, ao que existe, abre
caminhos.
Se o produtor serve ao Mercado, deve ter
claro que Mercado quer a repetição estéril, do já feito e conhecido, sem
sobressaltos; o Artista, quer inovar. O Mercado, eclético, mercadeja arte e sabão em pó, porque ambos
são necessários e vendáveis, mas não é justo confundir artista e saponáceo.
É
verdade que nós, artistas, queremos vender nossos discos, livros e quadros,
queremos a casa cheia, mas não ao preço da renúncia daquilo que nos explica e
justifica: a Arte, que será sempre revolucionária, ou nada será.
Repito, sempre, que não temos nada contra o
comércio, como tal. Admiro mesmo os comerciantes que fazem do seu comércio uma
arte, mas tenho pena dos artistas que fazem, da sua Arte, um comércio.
Cultura, traduzida em Moral, fixa a Tradição.
A Tradição, em si, não é boa nem má, pois é criada por sociedades que não são
eternas. Devemos cultivar as tradições humanísticas, mas, com energia, rejeitar
as cruéis e desumanas.
No mês passado, eu estive na Índia com
todo o meu Centro carioca, presidindo a fundação da Federação Indiana de Teatro
do Oprimido, na mesma semana em que foi promulgada uma lei autorizando o Estado
a tentar dissuadir os pais de forçarem o casamento de seus filhos crianças. A
Lei dizia que, se esses casamentos já tivessem sido realizados, seriam válidos
por respeito às tradições familiares. Casar crianças e obrigá-las à
convivência, é crime, e nenhuma tradição pode justificar um crime!
Na mesma semana, foi promulgada, na
mesma Índia, outra lei, a que protege as mulheres contra a violência doméstica.
Está em vigor. Lei radical, exemplar, que condena e pune, não apenas a
violência física e sexual, mas até mesmo o palavrão atirado contra a esposa ou
namorada, a tia, a sogra, a filha ou a vizinha. Peço aos legisladores,
porventura presentes, que levem em conta
a sugestão indiana: seja a mulher quem for, nem palavrão, nem com uma flor.
Exemplos de tradições culturais odiosas
não nos faltam e, entre tantas, podemos citar os flagelos que são as guerras
coloniais e as imperialistas, disfarçadas ou não; a pena de morte e a
escravidão; o Cassino da Bolsa de Valores que faz, do Mercado, um Deus, e o
cinema de Hollywood, Deus do Mercado; os genocídios étnicos, passados e atuais;
o mundo em chamas.
Contra essas tradições sempre se lutou.
A Revolução Francesa, que representou um bem para a Humanidade, não respeitou
as tradições da realeza; nós, se tivéssemos mantido nossas tradições
monárquicas, hoje não seríamos República.
Cruéis tradições devem ser combatidas
com vigor por serem contrárias à humanização do ser humano. Mas devemos
recorrer às nossas boas e sadias tradições quando somos invadidos pela mídia
globalizada, arte enlatada, notícias manipuladas, ódio racial, pensamento
único.
Isto é a Cultura: acabar com as
tradições malsãs criando novos caminhos, inventar uma Ética. Se, no Brasil, já foi tradição a fome no
Norte e Nordeste, Cultura é dar de comer ao faminto. Se é tradição o latifúndio
improdutivo, Cultura é permitir que, quem sabe, pode e quer, que o faça
produzir. Se foi tradição servil imitar a arte alheia, surgiram os Pontos de
Cultura para liberar a nossa criatividade, engenho e arte.
Os Pontos de Cultura vêm nos lembrar que
não se pode privatizar a denominação de Artista, pois Artistas somos todos nós,
seres humanos: somos os inventores do mundo. Todos nós somos capazes de
produzir Arte, – não uns melhor que outros, mas cada um melhor do que si mesmo.
Esta é, em Arte, a única competição que
devemos aceitar: eu, comigo. Como escreveu o poeta quinhentista português, Sá
de Miranda: “Comigo me desavim, sou posto em todo perigo, não posso viver
comigo, nem posso fugir de mim”. Isto é Arte: todos nós conosco nos desavimos
e, como somos artistas, nos desaviremos sempre, conosco e com o mundo, até
mudarmos o mundo que temos, e mudar o que faremos.
Se era tradição nortear nossos passos
pelo que fazem os países do Norte, temos agora que usar o neologismo de um
amigo meu, temos que “sulear” nossos caminhos, estendendo a mão amiga aos
países que estão nesta mesa, e a outros que, nesta mesa, também têm assento e,
no nosso coração, lugar.
Reconhecemos a nossa fraternidade com os
países da América Latina, como o Equador; africanos, como a África do Sul;
asiáticos, como a imensa Índia; e eu, como bom português trasmontano que também
sou, de Justes e Vila Real, saúdo a presença querida de Portugal.
Muito obrigado.
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