CARTA DO PROFESSOR JOSÉ PACHECO SOBRE O FIM DO PROJETO ÂNCORA

Foto Divulgação
Em 2013 tive a oportunidade de vivenciar uma imersão de dois intensos dias no Projeto Âncora, na cidade de Cotia, que realizava um modelo educacional semelhante a Escola da Ponte, de Portugal. O Professor José Pacheco, idealizador da proposta e um homem a frente do seu tempo, nos conduziu para a metodologia dessa escola aberta, como sempre muito empático e acolhedor, como lhe é peculiar. Meu encanto por aquele modelo libertário correspondia às minhas inquietudes de um jovem apaixonado por educação, mas não por qualquer forma de educação, sobremaneira uma escola que legitime o pensamento, a criatividade e a auto-governabilidade, principalmente pela possibilidade de ruptura de modelos tradicionais de escola, numa práxis que eu alimento até os dias atuais. 

Ao longo da história, muitos pensadores propuseram formas provocativas e sensíveis de refletir o mundo; tanto a Escola Lumiar, quanto a Reggio Emilia, também possuem características de promoção da diversidade cultural, autonomia e protagonismo das crianças, respeitando sua ludicidade e sobretudo sua potência criativa; portanto modelos inovadores de educação, frequentemente esbarram na burocracia de currículos ultrajantes, que não criam conexões com as realidades atuais. 

A metologia da Lumiar está institucionalizada numa rede particular de ensino, na cidade de São Paulo, em que a mensalidade gira em torno de 3.500 reais mensais, já a metodologia da escola Reggio Emilia (Itália) é pesquisada por educadores e educadoras de todos os cantos do mundo, mas desprezada pelas frequentes gestões públicas que se sucedem. 

O Brasil fulgura entre as últimas posições do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) e essa não é a única prova de que o sistema público brasileiro não tem sido efetivo; a descontinuidade de políticas públicas, os baixos salários dos professores, a falta de propostas inovadoras e a ausência das famílias no processo de ensino aprendizagem de seus filhos formam uma receita fadada ao fracasso. 

Em 2023 completo 20 anos de educação, tempo suficiente para um importante diagnóstico pessoal, tanto de minha prática pedagógica, quanto dos lócus sociais que provoquei com projetos de arte/educação comunitária, e em todas as diferentes fases dessa trajetória, minha indignação com os padrões, regras infundadas, muitos decretos e normativas vazias e sem sentido me colocaram num lugar de negação desses modelos e mais do que isso, de transgressão para a ruptura de modelos que não exaltem a exuberância da infância e do idealismo da juventude. Porém, por muitas vezes a deriva, entre cores, formas, sons, ideias e sonhos, diante de quadradinhos enfadonhos de diários de classe, não me canso de refletir tudo isso.

Junto a essa reflexão, deixo abaixo uma carta-desabafo, escrita pelo professor  José Pacheco, sobre o fim do exitoso Projeto Âncora:


Barueri, 29 de abril de 2040

No dia 14 de abril de há vinte anos, a Edilene falou-nos, como só ela sabe, da Escola do Projeto Âncora e da Escola Aberta, numa das “lives” de abril. A Amanda tinha preparado a “live” com perfeição, esperávamos que fosse mais um tempo de grandes aprendizagens. E assim foi: uma live esclarecedora. Mas, estou viciado na escrita e não resisto a enviar-vos uma cartinha, para vos falar da possibilidade de fazer uma educação diferente, De possibilidades e de… obstáculos.

Em 2011, correspondendo ao pedido do saudoso Walter, rumei a Cotia, para ajudar a criar a Escola do Projeto Âncora. Ajudei a Cláudia e a Edilene a coordenar um extraordinário projeto. Os obstáculos a transpor eram  imensos – a maldade humana, o assistencialismo, a ignorância – e o projeto foi destruído. Tão logo foi possível, fez-se a estória do desenlace, um livrinho escrito a muitas mãos, que descreveu o pérfido processo de aniquilamento do projeto.

O Âncora foi um dos 178 projetos que o MEC reconheceu como inovadores, em 2015. Diz-se que a inovação mata a inovação… e a visibilidade social matou os projetos. Em meados de 2020, poucos restavam. Quase todos foram extintos, ou se degradaram, deixaram de ser inovadores. Em breve, vos contarei o epílogo do projeto de maior duração: o da Escola da Ponte. Soçobrou, ao cabo de dezenas de anos de sofrimento e resiliência. Sempre mantive extrema admiração pelos professores, que por lá continuaram, quando da Ponte me afastei. Compreendi que resistiram quanto puderam. E lhes fiquei grato, por me terem ajudado a compreender a origem do drama. Esperançoso que era (e ainda sou), fiquei na expetativa de que retomassem caminhos de mudança e inovação.

Nos idos de 2001, dando notícia da precária sobrevivência da Escola da Ponte, eu me dirigia a uma neta de tenra idade –  que viria a tornar-se psicóloga – com estas palavras: Tudo o que é justo e verdadeiro se ergue das cinzas, como a Fénix. As gaivotas da nossa história continuaram a sobrevoar mares longínquos, em busca de novos sóis, animadas de uma coragem que permite reconstruir ninhos devassados, envolvidas numa verdade tranquila, acima da espuma dos dias. Se a eternidade me esperar para além dos noventa, ainda hei de fazer um “manual da sobrevivênca dos projetos”, em homenagem àqueles que ergueram o Projeto Âncora, a Escola Aberta… Já escrevi a introdução, contando o início da Escola da Ponte. Numa noite de 1976, destruíram a horta e o hospital dos animais, que as crianças cuidavam com imenso desvelo. Criminosos a soldo de políticos locais pintaram com o sangue das vítimas, na parede da escola, a inscrição: Morte ao professor. Havia sangue por todo o lado. Chorei a destruição, abraçando-me às crianças, que choravam abraçadas aos despojos dos animais assassinados.

Quando, por volta de 1984, conseguimos assegurar a todos os alunos o direito à educação, começamos a receber torpes ataques. Os detratores agiram de forma violenta, explícita no terrorismo verbal, via telefone e em tentativas de agressão física. Lançavam panfletos, na calada da noite, contendo acusações falsas. Publicavam boatos em jornais. Porém, o sofrimento maior foi termos descoberto que muitos desses ataques eram provenientes de escolas próximas. Apercebemo-nos de que o maior aliado de um professor era o outro professor. Mas, com mágoa, também descobrimos que o maior inimigo de um professor “diferente” era o professor da escola do lado.

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