80 tiros e o calibre do ódio
Era uma vez
uma família reunida em seu automóvel financiado, num domingo ensolarado, à
caminho de um chá de bebê. Essa família na expectativa da chegada do que vai
nascer, jamais poderia imaginar que teria seu caminho abreviado por um ponto
final. Um não! Oitenta pontos finais de grosso calibre... Uma reticência
interminável; tal qual o deboche do racismo impregnado na chuva de cápsulas,
pólvora, cartuchos e dignidades caídas no chão. Uma barbárie em seu curso,
enviesada, misturada em muitas plataformas e mentes.
É uma
mistura tão insana... A fábula do cidadão de bem é preocupante pelo rótulo que
foi colocado. Insisto, o ódio é grife de mentes rasas e corações vazios desses
tempos...
No meio do
caminho havia uma tropa, havia uma tropa no meio no meio do caminho...
Foram tantas
tentativas de encerrar o trajeto que a mente-dejeto de um ser assassino nem
reparou que no automóvel havia um pai de família, uma mãe desesperada, um idoso
e um menino...
O fardado
não honrou a “mão amiga” lema de sua tropa, à uma família tradicional
brasileira tão proclamada nesses tempos, provando o calibre da incompetência,
desmedida, fúria e raízes de discursos odiosos. Ele feito bicho arisco ou encarnando
um escrivão dos tempos de outrora, sem tino que metralha uma folha em branco
com a velha máquina de datilografar barulhenta, numa sala escura, opulenta, sem
nexo do que escreve e pingando ódio; nesse caso em pele escura, família que
virou alvo na cidade insegura; numa via da zona norte, entregue à sorte que não
chegou. A vida daquele cidadão que também era pai, que também era artista, sucumbiu
defronte uma mente nazista, que fuzila, extermina e executa numa sociedade
filha do caos.
Atitude
sintomática; um retrato de um pensamento cristalizado em nossa sociedade; mas
diante da análise rasa que nos foi apresentada “... foi um engano” É um engodo!
Os
acontecimentos não são aleatórios, ocasionais ou avulsos na história; eles
compõem todo cenário atual, um espectro de realidade que circunda nossos dias,
que está implícito em comentários de redes sociais, que está explícito nas
análises de autoridades e revelador na ausência de prontidão de quem se espera.
Mas também comunicam muito sobre o antes e o depois do fato.
Certas
notícias ganham volúpia e repercussão por dizerem muito mais do que a força de
seu acontecimento, por suas raízes, pelas causas e consequências... Certas
notícias ganham o silêncio de alguns covardes que também fuzilam com canetas
nas mãos ou os dedos no teclado do smarthphone.
O
fuzilamento começou e em alguns segundos saiu do carro uma mulher em prantos;
eles não pararam de atirar, saiu um idoso; eles não pararam, saiu uma criança,
eles não pararam; a mulher gritava desesperada e eles também não pararam com o
fuzilamento quando sorriram em deboche, quando mentiram no depoimento dizendo
que responderam à uma injusta agressão.
Abdico de
qualquer eufemismo para minimizar essa execução sumária, covarde e simbólica...
O ataque daqueles militares foi na periferia do Rio de Janeiro, li na rede
social a eloquente frase carregada de ironia “um engano de 80 tiros não pegaria
bem no Leblon “ por que vidas importam tão pouco hoje em dia? E nosso país
segue sendo destaque internacional; lamento profundamente...
80 tiros de
advertência na periferia do Rio, dos filhos desse solo és mãe gentil; pátria
amada fuzil.
Tiago Ortaet
Abril de 2019
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