ESSE É UM DIÁRIO DE CLASSE!!! MAIS UM CONTO ESCOLAR - POÉTICA DOCENTE by Tiago Ortaet

DESTACO QUE ESTE TEXTO REFERE-SE A UMA BELÍSSIMA EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA, PEDAGÓGICA E SOCIAL DESENVOLVIDA PELO PROFESSOR TIAGO ORTAET (COM APOIO DA EQUIPE DE LÍDERES CULTURAIS DO GLEBA) NA EMEF FREI ANTONIO DE SANTANA GALVÃO.

O QUE PASSA E O QUE FICA

 Um evento de moda numa escola que até anos atrás tinha como trilhos a caoticidade e inserida numa comunidade extremamente violenta é a possibilidade de um recorte numa situação até então desconhecida, uma costura de assuntos interdisciplinares frente a um tema transversal e, sobretudo um experimento nas questões de égo, identidade e alteridade.

Moda significa “prazo de validade”, mas no nosso caso, tenho a pretensão que seja um produto cultural, artístico, pedagógico e sobretudo social que se renove sempre, uma moda permanente, a mesma, mas renovada, experimentada, como ao meu ver, tem que ser na vida da gente; uma rotina de reinvenção. Isso me faz até lembrar de palavras da escritorapoetiza Clarice Lispector, mas a poesia que eu quero contar agora é a da narrativa do olhar, dos olhares, até mesmo daqueles que não veem com a lógica natural das coisas...

Durante as várias semanas de pesquisas sobre moda e arte em sala de aula, dos exercícios teóricos aos práticos, sempre inseria tópicos do evento que culminaria o ciclo de estudos e causaria um “START” em toda escola. Num desses dias falei que para confecção de nossa passarela, usaríamos um excelente improviso, que eu já havia testado em outras ocasiões e comprovadamente dá certo. Citei também que acima da passarela tinha que ter um tapete vermelho, para dar um status de solenidade, de especialidade, enfim para esse detalhe tão suntuoso pudesse se aliar a tantos outros que estava planejando.

Durante semanas, era questionado todos os dias se já havia conseguido o tal tapete, tanto pelos alunos, quanto pelos professores; embora eu não e estivesse tendo sorte nem persuasão suficiente para convencer os líderes das igrejas a me emprestar por apenas um dia; eu sempre afirmava categoricamente: “Não se preocupem, eu garanto que vou conseguir!!!”

Cheguei a ir nas comunidades aos sábados, mas nenhuma se sensibilizou com a história ou de fato não tinham o objeto para emprestar.
 

Chegou a véspera do tão aguardado dia dos desfiles; dia de levar os alunos para prova das roupas doadas por empresas que consegui para patrocinar o evento, dia de montar e estruturar todo cenário, passarela, camarins, tudo dentro da simplicidade de uma escola publica, mas com uma estética, talvez nunca antes vista naquele lugar. Um dia repleto!
 

Minha convicção do empréstimo do tal tapete começou a perder força; mas não admitia desistir...

Já passavam das 18 horas, a tarde se esvaia e o menino Iago me garantiu “Professor pode ter certeza que eu vou conseguir esse tapete pro nosso desfile” fui tocado pelo compromisso que envolvera o aluno.

Mas disse a ele que naquele momento, já não tínhamos mais a possibilidade de carona da professora, pois a mesma já havia ido embora e que eu já tinha tentado em todas as igrejas do bairro e nenhuma resposta positiva. Mas ao mesmo tempo em que eu tentava  acreditar que teríamos de realizar o evento sem o conceito estético do tal tapete vermelho, algo dentro de mim pedia para insistir mais um pouco.
 

Foi ai que a Professora Arlete se dispôs a ir numa igreja do bairro vizinho na qual ainda eu não tinha visitado; chegando lá, encontramos a mesma de portas fechadas, mas uma vizinha da paróquia indicou uma outra bem distante dali.

Nesse momento o menino Iago disse “É nessa igreja que eu frequento pra fazer atividades 2 vezes por semana e é lá que vamos conseguir” cogitei a ideia de irmos e a professora topou.

“Eu explico o caminho!!!” disse o garoto ainda mais eufórico como se já previsse que conseguiríamos...

Seria simples e direto, se o menino não fosse deficiente visual (com cerca de 5% de visão)

A professora olhou pra mim, com um olhar de dúvida, mas afirmei nossa ida, afinal tínhamos de arriscar.

Entramos em muitas ruas erradas, ele ia com o vidro aberto pra tentar identificar o caminho que ele fazia durante as tardes, penso eu através de cores e vultos que conseguia identificar.
 

O menino com todo seu esforço, bermuda, uma blusa muito fina, olhos arregalados e uma tremedeira intensa causada pelos 7 graus que fazia naquela noite congelante em São Paulo; sussurrava “vai dar certo, vai dar certo...”

Mesmo que não encontrássemos a tal comunidade, já teria valido a pena pela dedicação que ele demonstrou, como quem agradece todo o empenho e esforço que eu tive ao longo de quase 2 meses para planejar o evento.
 

Após indicar dezenas de ruas erradas, vai e volta, vira e desvira; o menino dizia “Eu não to conseguindo identificar muito bem por que já é de noite e fica tudo escuro...”

“Não tem problema Iago, nós entendemos!!!” dissemos a ele.

 Quando de repente ele  identifica uma luz azul e diz: “Pronto já é logo ali na frente, tá vendo aquela cruz lá em cima???” De fato, era uma cruz iluminada daquelas tradicionais sob o topo das igrejas, enfim o coração nos guiou ao nosso destino...

 Descemos do carro e nos deparamos com portas fechadas mais uma vez... Mas o garoto, não conformado, disse que atrás da igreja havia uma ONG onde ele já frequentara e pediu que eu o conduzisse até lá pra procurar a coordenadora afim de saber notícias do padre.

 Fomos até lá, mas a senhora havia acabado de sair, o segurança disse que não era dia do padre ir pra igreja e que viéssemos no dia seguinte; mas nosso evento já seria na manhã seguinte.

 Vi nos seus olhos a tristeza por não ter conseguido o “detalhe mais importante” como eu já havia dito em sala de aula, para nosso show de artes que estava por vir.

 Quando voltávamos para o carro, vi uma luz se acender na secretaria da igreja. Fomos até o portão e chamamos. O padre Juarez da paróquia São Benedito abre a porta dizendo que nem era para ele estar lá, somente fora buscar um objeto.

 Logo o menino atravessou o início de diálogo dizendo “Oi padre é que esse professor vai fazer um desfile lindo amanhã e tem que ter um tapete vermelho...” O padre sorriu e antes que ele dissesse algo, eu também intercedi explicando os propósitos do projeto.

 O padre disse que poderíamos ir bem cedo que no dia seguinte, antes do evento, que ele emprestaria o tapete que a igreja usara para celebrar casamentos.

 Mas com um detalhe, o tapete era azul!!! Então o azul nos trouxe mensagens nas entrelinhas desse casamento entre a arte e a solidariedade.

Na volta pra escola, o garoto disse “Agora sim estou com frio”

A tensão que ele depositou nessa missão de conquistar esse “detalhe importante” o vestiu de sensibilidade e não há frio do mundo capaz de esfriar o calor da alma.

Assim que chegamos de volta, imediatamente busquei blusas minhas e ele se protegeu melhor até chegar em casa na companhia do seu irmão mais velho foi buscá-lo.

Tiago Ortaet
27 de Setembro de 2012

 

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